Em 1950, ninguém tinha TV em casa na rua Henrique Dias. Os primeiros
aparelhos de televisão estavam chegando ao Brasil e custavam muito caro. Eu
escutava no rádio todos os jogos do São Paulo e até os do Corinthians, por causa do
tio Constante.
Uma vez, meu tio Odílio, irmão mais velho do meu pai, prometeu me
levar ao estádio do Pacaembu para ver o São Paulo se eu me portasse bem. Virei
santo naquela semana de espera interminável. No sábado depois do almoço ele veio
me buscar; eu já estava pronto desde as onze da manhã. A rua inteira sabia que eu ia
assistir a São Paulo versus Nacional, um time fraco escolhido a dedo pelo tio Odílio
para não desiludir meu coração são-paulino.
Gostei do amendoim embrulhado em
canudo de papel, achei lindo o verde gramado, as cores dos uniformes e o estrondo
dos foguetes, mas os jogadores me decepcionaram um pouco, apesar de ganharem
por dois a zero. Pelo rádio o jogo era mais emocionante: “Teixeirinha mata no peito,
baixa na terra passa por um, por dois, invade a área, fulmina e é gol!”
Na minha
imaginação infantil, aquele homem que matava no peito, invadia e fulminava tinha
superpoderes. O gol do locutor reverberava em meus ouvidos, longo, interminável: gol
do São Paulo! Quanta alegria! No campo era menos emocionante, os jogadores de
carne e osso erravam passes, chutavam para fora e perdiam gol cara a cara,
exatamente como nós na porta da fábrica.
Então veio a Copa do Mundo de 1950 e o
Brasil foi para a final com o Uruguai, no Maracanã. O país parou naquele Domingo de
sol e, com ele, o Brás. Almocei e fui encontrar meu primo Flávio, para ouvirmos a
transmissão da partida no Armazém Simões, que os irmãos Lauro, Laurindo e
Laurentino tinham herdado do pai e que ficava na esquina, embaixo do sobrado dos
Bemposta.
A tia Leonor, mãe do Flávio, sempre brincalhona, me deu um pedaço de
goiabada cascão e nós fomos para lá. Escutei a irradiação sentado numa pilha de
sacos de arroz, todo importante, ao lado dos moços do balcão. Estavam lá o Honório e
a Honorina, irmãos de Lauro, Laurindo e Laurentino; o Caçapa, funcionário do
Gasômetro que jogava bola na rua com um gorro de rendinha para prender o cabelo; o
Isidoro, que uma vez me defendeu de um engraxate valentão; os irmãos Zeca e
Fernando Braulio; o negro Gradim e outros que disputavam partidas sensacionais na
frente da fábrica, nas tardes de sábado e nas manhãs de domingo, dias de folga para
eles.
O Brasil marcou primeiro: gol de Friaça, ponta-direita do São Paulo. No segundo
tempo o Uruguai empatou, mas não abalou os que estavam ali: todos tinham certeza
de que seríamos campeões mundiais pela primeira vez. Os fogos para a
comemoração já aguardavam no canto, ao lado de um balão-estrela verde e amarelo
decorado com o nome dos jogadores.
O desastre veio pelos pés do uruguaio Gighia,
autor do segundo gol. O armazém ficou mudo, apenas o cheiro de saco de
mantimentos no ar. A voz do locutor perdeu o brilho, melancólica: Está encerrada a
peleja no Maracanã. Uruguai, campeão do mundo! Ficaram todos de cabeça baixa por
tanto tempo, que parecia brincadeira de como-está-fica. Em silêncio, depois, saíram
desolados, alguns com lágrimas nos olhos. O Caçapa deu um murro estrondoso na
porta do armazém e foi confortado pelo seu Albino das Neves.
Esse seu Albino era um
português com barriga d’água que meu tio médico periodicamente esvaziava com uma
seringa enorme: o líquido amarelo que saía ele jogava no penico, embaixo da cama.
Encostado na carroceria de um caminhão, a cabeça apoiada no braço direito, o Isidoro
soluçava feito criança. Era a primeira vez que eu via homem chorar sem ninguém ter
morrido.
Dráuzio Varella. Nas ruas do Brás. Coleção Memória e História. São Paulo, Companhia das
letrinhas, 2000.
Nenhum comentário:
Postar um comentário