terça-feira, 2 de junho de 2020

RELATO PESSOAL

FUTEBOL

      Em 1950, ninguém tinha TV em casa na rua Henrique Dias. Os primeiros aparelhos de televisão estavam chegando ao Brasil e custavam muito caro. Eu escutava no rádio todos os jogos do São Paulo e até os do Corinthians, por causa do tio Constante. 
    Uma vez, meu tio Odílio, irmão mais velho do meu pai, prometeu me levar ao estádio do Pacaembu para ver o São Paulo se eu me portasse bem. Virei santo naquela semana de espera interminável. No sábado depois do almoço ele veio me buscar; eu já estava pronto desde as onze da manhã. A rua inteira sabia que eu ia assistir a São Paulo versus Nacional, um time fraco escolhido a dedo pelo tio Odílio para não desiludir meu coração são-paulino. 
       Gostei do amendoim embrulhado em canudo de papel, achei lindo o verde gramado, as cores dos uniformes e o estrondo dos foguetes, mas os jogadores me decepcionaram um pouco, apesar de ganharem por dois a zero. Pelo rádio o jogo era mais emocionante: “Teixeirinha mata no peito, baixa na terra passa por um, por dois, invade a área, fulmina e é gol!”
      Na minha imaginação infantil, aquele homem que matava no peito, invadia e fulminava tinha superpoderes. O gol do locutor reverberava em meus ouvidos, longo, interminável: gol do São Paulo! Quanta alegria! No campo era menos emocionante, os jogadores de carne e osso erravam passes, chutavam para fora e perdiam gol cara a cara, exatamente como nós na porta da fábrica. 
        Então veio a Copa do Mundo de 1950 e o Brasil foi para a final com o Uruguai, no Maracanã. O país parou naquele Domingo de sol e, com ele, o Brás. Almocei e fui encontrar meu primo Flávio, para ouvirmos a transmissão da partida no Armazém Simões, que os irmãos Lauro, Laurindo e Laurentino tinham herdado do pai e que ficava na esquina, embaixo do sobrado dos Bemposta. 
       A tia Leonor, mãe do Flávio, sempre brincalhona, me deu um pedaço de goiabada cascão e nós fomos para lá. Escutei a irradiação sentado numa pilha de sacos de arroz, todo importante, ao lado dos moços do balcão. Estavam lá o Honório e a Honorina, irmãos de Lauro, Laurindo e Laurentino; o Caçapa, funcionário do Gasômetro que jogava bola na rua com um gorro de rendinha para prender o cabelo; o Isidoro, que uma vez me defendeu de um engraxate valentão; os irmãos Zeca e Fernando Braulio; o negro Gradim e outros que disputavam partidas sensacionais na frente da fábrica, nas tardes de sábado e nas manhãs de domingo, dias de folga para eles. 
      O Brasil marcou primeiro: gol de Friaça, ponta-direita do São Paulo. No segundo tempo o Uruguai empatou, mas não abalou os que estavam ali: todos tinham certeza de que seríamos campeões mundiais pela primeira vez. Os fogos para a comemoração já aguardavam no canto, ao lado de um balão-estrela verde e amarelo decorado com o nome dos jogadores. 
        O desastre veio pelos pés do uruguaio Gighia, autor do segundo gol. O armazém ficou mudo, apenas o cheiro de saco de mantimentos no ar. A voz do locutor perdeu o brilho, melancólica: Está encerrada a peleja no Maracanã. Uruguai, campeão do mundo! Ficaram todos de cabeça baixa por tanto tempo, que parecia brincadeira de como-está-fica. Em silêncio, depois, saíram desolados, alguns com lágrimas nos olhos. O Caçapa deu um murro estrondoso na porta do armazém e foi confortado pelo seu Albino das Neves. 
       Esse seu Albino era um português com barriga d’água que meu tio médico periodicamente esvaziava com uma seringa enorme: o líquido amarelo que saía ele jogava no penico, embaixo da cama. Encostado na carroceria de um caminhão, a cabeça apoiada no braço direito, o Isidoro soluçava feito criança. Era a primeira vez que eu via homem chorar sem ninguém ter morrido.

 Dráuzio Varella. Nas ruas do Brás. Coleção Memória e História. São Paulo, Companhia das letrinhas, 2000.

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