domingo, 23 de agosto de 2020

24/8 - TERTÚLIA DIALÓGICA LITERÁRIA

 Casa tomada

Julio Cortázar


Gostávamos da casa porque, além de ser espaçosa e antiga (as casas antigas de hoje sucumbem às mais vantajosas liquidações dos seus materiais), guardava as lembranças de nossos bisavós, do avô paterno, de nossos pais e de toda a nossa infância.

Acostumamo-nos Irene e eu a persistir sozinhos nela, o que era uma loucura, pois nessa casa poderiam viver oito pessoas sem se estorvarem. Fazíamos a limpeza pela manhã, levantando-nos às sete horas, e, por volta das onze horas, eu deixava para Irene os últimos quartos para repassar e ia para a cozinha. O almoço era ao meio-dia, sempre pontualmente; já que nada ficava por fazer, a não ser alguns pratos sujos. Gostávamos de almoçar pensando na casa profunda e silenciosa e em como conseguíamos mantê-la limpa. Às vezes chegávamos a pensar que fora ela a que não nos deixou casar. Irene dispensou dois pretendentes sem motivos maiores, eu perdi Maria Esther pouco antes do nosso noivado. Entramos na casa dos quarenta anos com a inexpressada idéia de que o nosso simples e silencioso casamento de irmãos era uma necessária clausura da genealogia assentada por nossos bisavós na nossa casa. Ali morreríamos algum dia, preguiçosos e toscos primos ficariam com a casa e a mandariam derrubar para enriquecer com o terreno e os tijolos; ou melhor, nós mesmos a derrubaríamos com toda justiça, antes que fosse tarde demais.

Irene era uma jovem nascida para não incomodar ninguém. Fora sua atividade matinal, ela passava o resto do dia tricotando no sofá do seu quarto. Não sei por que tricotava tanto, eu penso que as mulheres tricotam quando consideram que essa tarefa é um pretexto para não fazerem nada. Irene não era assim, tricotava coisas sempre necessárias, casacos para o inverno, meias para mim, xales e coletes para ela. Às vezes tricotava um colete e depois o desfazia num instante porque alguma coisa lhe desagradava; era engraçado ver na cestinha aquele monte de lã encrespada resistindo a perder sua forma anterior. Aos sábados eu ia ao centro para comprar lã; Irene confiava no meu bom gosto, sentia prazer com as cores e jamais tive que devolver as madeixas. Eu aproveitava essas saídas para dar uma volta pelas livrarias e perguntar em vão se havia novidades de literatura francesa. Desde 1939 não chegava nada valioso na Argentina. Mas é da casa que me interessa falar, da casa e de Irene, porque eu não tenho nenhuma importância. Pergunto-me o que teria feito Irene sem o tricô. A gente pode reler um livro, mas quando um casaco está terminado não se pode repetir sem escândalo. Certo dia encontrei numa gaveta da cômoda xales brancos, verdes, lilases, cobertos de naftalina, empilhados como num armarinho; não tive coragem de lhe perguntar o que pensava fazer com eles. Não precisávamos ganhar a vida, todos os meses chegava dinheiro dos campos que ia sempre aumentando. Mas era só o tricô que distraía Irene, ela mostrava uma destreza maravilhosa e eu passava horas olhando suas mãos como puas prateadas, agulhas indo e vindo, e uma ou duas cestinhas no chão onde se agitavam constantemente os novelos. Era muito bonito.

Como não me lembrar da distribuição da casa! A sala de jantar, lima sala com gobelins, a biblioteca e três quartos grandes ficavam na parte mais afastada, a que dá para a rua Rodríguez Pena. Somente um corredor com sua maciça porta de mogno isolava essa parte da ala dianteira onde havia um banheiro, a cozinha, nossos quartos e o salão central, com o qual se comunicavam os quartos e o corredor. Entrava-se na casa por um corredor de azulejos de Maiorca, e a porta cancela ficava na entrada do salão. De forma que as pessoas entravam pelo corredor, abriam a cancela e passavam para o salão; havia aos lados as portas dos nossos quartos, e na frente o corredor que levava para a parte mais afastada; avançando pelo corredor atravessava-se a porta de mogno e um pouco mais além começava o outro lado da casa, também se podia girar à esquerda justamente antes da porta e seguir pelo corredor mais estreito que levava para a cozinha e para o banheiro. Quando a porta estava aberta, as pessoas percebiam que a casa era muito grande; porque, do contrário, dava a impressão de ser um apartamento dos que agora estão construindo, mal dá para mexer-se; Irene e eu vivíamos sempre nessa parte da casa, quase nunca chegávamos além da porta de mogno, a não ser para fazer a limpeza, pois é incrível como se junta pó nos móveis. Buenos Aires pode ser uma cidade limpa; mas isso é graças aos seus habitantes e não a outra coisa. Há poeira demais no ar, mal sopra uma brisa e já se apalpa o pó nos mármores dos consoles e entre os losangos das toalhas de macramê; dá trabalho tirá-lo bem com o espanador, ele voa e fica suspenso no ar um momento e depois se deposita novamente nos móveis e nos pianos.

Lembrarei sempre com toda a clareza porque foi muito simples e sem circunstâncias inúteis. Irene estava tricotando no seu quarto, por volta das oito da noite, e de repente tive a idéia de colocar no fogo a chaleira para o chimarrão. Andei pelo corredor até ficar de frente à porta de mogno entreaberta, e fazia a curva que levava para a cozinha quando ouvi alguma coisa na sala de jantar ou na biblioteca. O som chegava impreciso e surdo, como uma cadeira caindo no tapete ou um abafado sussurro de conversa. Também o ouvi, ao mesmo tempo ou um segundo depois, no fundo do corredor que levava daqueles quartos até a porta. Joguei-me contra a parede antes que fosse tarde demais, fechei-a de um golpe, apoiando meu corpo; felizmente a chave estava colocada do nosso lado e também passei o grande fecho para mais segurança.

Entrei na cozinha, esquentei a chaleira e, quando voltei com a bandeja do chimarrão, falei para Irene:

— Tive que fechar a porta do corredor. Tomaram a parte dos fundos.

Ela deixou cair o tricô e olhou para mim com seus graves e cansados olhos.

— Tem certeza?

Assenti.

— Então — falou pegando as agulhas — teremos que viver deste lado.

Eu preparava o chimarrão com muito cuidado, mas ela demorou um instante para retornar à sua tarefa. Lembro-me de que ela estava tricotando um colete cinza; eu gostava desse colete.

Os primeiros dias pareceram-nos penosos, porque ambos havíamos deixado na parte tomada muitas coisas de que gostávamos. Meus livros de literatura francesa, por exemplo, estavam todos na biblioteca. Irene pensou numa garrafa de Hesperidina de muitos anos. Freqüentemente (mas isso aconteceu somente nos primeiros dias) fechávamos alguma gaveta das cômodas e nos olhávamos com tristeza.

— Não está aqui.

E era mais uma coisa que tínhamos perdido do outro lado da casa.

Porém também tivemos algumas vantagens. A limpeza simplificou-se tanto que, embora levantássemos bem mais tarde, às nove e meia por exemplo, antes das onze horas já estávamos de braços cruzados. Irene foi se acostumando a ir junto comigo à cozinha para me ajudar a preparar o almoço. Depois de pensar muito, decidimos isto: enquanto eu preparava o almoço, Irene cozinharia os pratos para comermos frios à noite. Ficamos felizes, pois era sempre incômodo ter que abandonar os quartos à tardinha para cozinhar. Agora bastava pôr a mesa no quarto de Irene e as travessas de comida fria.

Irene estava contente porque sobrava mais tempo para tricotar. Eu andava um pouco perdido por causa dos livros, mas, para não afligir minha irmã, resolvi rever a coleção de selos do papai, e isso me serviu para matar o tempo. Divertia-nos muito, cada um com suas coisas, quase sempre juntos no quarto de Irene que era o mais confortável. Às vezes Irene falava:

— Olha esse ponto que acabei de inventar. Parece um desenho de um trevo?

Um instante depois era eu que colocava na frente dos seus olhos um quadradinho de papel para que olhasse o mérito de algum selo de Eupen e Malmédy. Estávamos muito bem, e pouco a pouco começamos a não pensar. Pode-se viver sem pensar.

(Quando Irene sonhava em voz alta eu perdia o sono. Nunca pude me acostumar a essa voz de estátua ou papagaio, voz que vem dos sonhos e não da garganta. Irene falava que meus sonhos consistiam em grandes sacudidas que às vezes faziam cair o cobertor ao chão. Nossos quartos tinham o salão no meio, mas à noite ouvia-se qualquer coisa na casa. Ouvíamos nossa respiração, a tosse, pressentíamos os gestos que aproximavam a mão do interruptor da lâmpada, as mútuas e freqüentes insônias.

Fora isso tudo estava calado na casa. Durante o dia eram os rumores domésticos, o roçar metálico das agulhas de tricô, um rangido ao passar as folhas do álbum filatélico. A porta de mogno, creio já tê-lo dito, era maciça. Na cozinha e no banheiro, que ficavam encostados na parte tomada, falávamos em voz mais alta ou Irene cantava canções de ninar. Numa cozinha há bastante barulho da louça e vidros para que outros sons irrompam nela. Muito poucas vezes permitia-se o silêncio, mas, quando voltávamos para os quartos e para o salão, a casa ficava calada e com pouca luz, até pisávamos devagar para não incomodar-nos. Creio que era por isso que, à noite, quando Irene começava a sonhar em voz alta, eu ficava logo sem sono.)

É quase repetir a mesma coisa menos as conseqüências. Pela noite sinto sede, e antes de ir para a cama eu disse a Irene que ia até a cozinha pegar um copo d'água. Da porta do quarto (ela tricotava) ouvi barulho na cozinha ou talvez no banheiro, porque a curva do corredor abafava o som. Chamou a atenção de Irene minha maneira brusca de deter-me, e veio ao meu lado sem falar nada. Ficamos ouvindo os ruídos, sentindo claramente que eram deste lado da porta de mogno, na cozinha e no banheiro, ou no corredor mesmo onde começava a curva, quase ao nosso lado.

Sequer nos olhamos. Apertei o braço de Irene e a fiz correr comigo até a porta cancela, sem olhar para trás. Os ruídos se ouviam cada vez mais fortes, porém surdos, nas nossas costas. Fechei de um golpe a cancela e ficamos no corredor. Agora não se ouvia nada.

— Tomaram esta parte — falou Irene. O tricô pendia das suas mãos e os fios chegavam até a cancela e se perdiam embaixo da porta. Quando viu que os novelos tinham ficado do outro lado, soltou o tricô sem olhar para ele.

— Você teve tempo para pegar alguma coisa? — perguntei-lhe inutilmente.

— Não, nada.

Estávamos com a roupa do corpo. Lembrei-me dos quinze mil pesos no armário do quarto. Agora já era tarde.

Como ainda ficara com o relógio de pulso, vi que eram onze da noite. Enlacei com meu braço a cintura de Irene (acho que ela estava chorando) e saímos assim à rua. Antes de partir senti pena, fechei bem a porta da entrada e joguei a chave no ralo da calçada. Não fosse algum pobre-diabo ter a idéia de roubar e entrar na casa, a essa hora e com a casa tomada.


Filho de pai diplomata, Julio Cortázar nasceu por acaso em Bruxelas, no ano de 1914. Com quatro anos de idade foi para a Argentina. Com a separação de seus pais, o escritor foi criado pela mãe, uma tia e uma avó. Com o título de professor normal em Letras, iniciou seus estudos na Faculdade de Filosofia e Letras, que teve que abandonar logo em seguida, por problemas financeiros. Para poder viver, deu aulas e diversos colégios do interior daquele país. Por não concordar com a ditadura vigente na Argentina, mudou-se para Paris, em 1951. Autor de contos considerados como os mais perfeitos no gênero, podemos citar entre suas obras mais reconhecidas “Bestiário” (1951), “Las armas secretas” (1959), ), “Rayuela”, (1963), “Todos los fuegos el fuego” (1966), “Ultimo round” (1969), “Octaedro” (1974), “Pameos y Meopas” (1971), “Queremos tanto a Glenda (1980), “Salvo el crepúsculo” — póstumo (1984) e "Papéis inesperados" — póstumo (2010). O escritor morreu em Paris, de leucemia, em 1984.


O texto acima foi publicado originalmente em "Bestiario" e extraído do livro "Contos Latino-Americanos Eternos", Bom Texto Editora, Rio de Janeiro — 2005, pág. 09, organização e tradução de Alicia Ramal.

 

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

10/8 - GABARITO DA TAREFA

 

GABARITO:

a) Os motivos apresentados, no texto, para o sofrimento histórico vivido pela comunidade quilombola Kalunga são: a falta de estrutura (apesar da comunidade ter mais de 200 anos) e a violência sexual sofrida por meninas quilombolas, que, mesmo após denúncias, não viram a punição de seus agressores.

b) A figura de linguagem presente, no final do texto, é o paradoxo. No trecho: “O silêncio prevalece e grita alto naquelas que se arriscaram a mostrar suas feridas. O sentimento é o de ter se exposto em vão”, percebemos a oposição entre silêncio e grita. O paradoxo consiste em uma contradição de ideias, ou seja, uma incoerência.

 

sábado, 8 de agosto de 2020

10/8 - TERTÚLIA DIALÓGICA LITERÁRIA - CORA CORALINA

 

Os meninos verdes – Conto de Cora Coralina

— E a estória dos Meninos Verdes, vovó?

— Então vocês querem saber a estória dos Meninos Verdes? Mas não é uma estória, é um acontecido. Me pediram para não divulgar o assunto, esperando para ver oque acontece, porque o caso é muito sério! Vou contar só pra vocês. Foi assim:

“No quintal da Casa Velha da Ponte sempre tivemos horta com verduras, legumes. Também pomar com árvores de frutas variadas e jardim com flores.”

O quintal é o mundo de seu Vicente, um homem que viveu sempre plantando, cultivando, colhendo. É prestadio e metediço.

Certo dia, entre plantas que nascem lá, boas ou más, apareceram duas plantas diferentes. Seu Vicente estranhou, queria arrancá-las. Eu disse:

— Não, deixe crescer, vamos ver o que sai daí.

Com o passar dos dias, as plantas se desenvolviam de forma estranha, não eram conhecidas de ninguém.

Certo foi que um dia, de manhã cedo ainda, no tempo de frio, vem seu Vicente com uma cara de espanto e me diz:

— Dona Cora, Dona Cora, vem ver uma coisa!

Eu estava acendendo o fogo para fazer o café e disse:

— Espera um bocado, depois do café eu vou.

— Não, não, a senhora vem já. Venha ver!

Impressionada com aquele chamado urgente fui até o quintal. E lá, debaixo das tais plantas estranhas, vi umas coisinhas que se mexiam, buliam. Umas coisas vivas.

Na primeira olhada não pude definir o que seria aquilo. Pareciam bichos, filhotes de passarinho, qualquer coisa que tivesse caído por ali, que tivesse despencado de um galho de árvore. E tinham se juntado na sombra daquelas duas plantas.

Depois me abaixei e examinei melhor. Eram seres vivos, com todas as formas de crianças em miniatura! Tomei um nas mãos, senti que era gelatinoso, com movimentos muito vivos, como querendo escapar da minha mão.

Assombrada, achei que precisava retirá-los da terra, porque eles estavam bem sujinhos!

Seu Vicente apanhou o balaio que ele usa para os trabalhos no quintal.

Forrou-o com panos e cobertas velhas e acomodou aqueles seres.

Eram sete, e, achando que eles estavam com frio, seu Vicente rebuçou.

Examinando de perto, perguntou:

— É bicho, é passarinho ou é gente?

— Velho isso é uma coisa que nós vamos indagar, e não fale pra ninguém!

— É salta-caminho! — falou assombrado.

— Cubra com mais um cobertor e leve para o outro lado da casa. Depois do café vou resolver o que se faz.

Voltei para o fogão, fiz o café, e comecei a imaginar o que seria aquilo. Fui vê-los. Estavam juntinhos e já não tremiam.

Tomei um nas mãos e vi que tinha a cabeça verde, olhos verdes, boquinha verde, dentinhos verdes em ponta, orelhas verdes e o cabelinho como de milho, mas verde. Os pés e as mãos tinham unhas como garras de passarinho. Na barriguinha lisa, o umbigo era apenas uma manchinha verde mais escura.

Eram dois grupos. Um grupo tinha a cabecinha chata e o cabelo pendendo para baixo. O outro grupo tinha cabeça pontuda, cabelo em ponta, tendendo para cima. Os sinais sexuais estavam um tanto indefinidos, mas notava-se a diferença entre um grupo e outro.

Tornei a agasalhá-los e disse:

— Velho, precisamos dar alimento pra eles.

Seu Vicente, sempre pronto a dar comida a todo bicho que aparece, falou:

— Vou fazer uma papa de farinha!

— Não, não faça de farinha, vou fazer mucilagem.

Seu Vicente alimentou os serezinhos às dedadas — à moda nordestina — passando na boca e empurrando. Assim, ele e os serezinhos ficaram todos lambuzados.

Aí, considerando que aquele mistério tinha que ser mantido em segredo, pensei que era muito pesado para mim só. Fiz um chamadinho para uma vizinha muito boa, que veio à minha casa. Contei a ela o acontecido.

— Preciso de sua ajuda.

Ela ficou admirada quando viu o conteúdo do balaio, e compreendeu a necessidade de guardar segredo.

— Dona Cora! Vou fazer uns macacõezinhos de flanela, parece que eles estão com frio.

Costurou quatro macacões rosa e três azuis, achou que eram meninas e meninos. Eles aceitaram as roupas.

Mais tarde, quando voltamos lá, eles tinham estraçalhado as flanelas com os dentinhos. Continuavam juntinhos, meio tremendo.

Depois passaram a não querer mais a mucilagem. Vi que em vez de aumentarem de peso e de tamanho estavam diminuindo.
Aí eu pensei: “E agora, deixar morrer à míngua não é possível”.

Minha vizinha sugeriu falar com seu irmão, um médico conceituado.

Dr. Passos veio mais tarde, olhou, espantou-se, e deu uma orientação muito inteligente:

— Tudo é verde neles. Como estão rejeitando alimento, vamos colorir a mucilagem de verde e vamos vesti-los de verde.

Minha vizinha costurou macacõezinhos verdes e passamos a alimentá-los com sopas e purês de espinafre, repolho, alface, agrião, chicória. Eles gostaram do verde das comidinhas e das roupas.

Seu Vicente transformou o balaio numa casinha, enfeitada de folhas verdes, com camas-beliche, cadeirinhas e mesinhas, tudo pintadinho de verde.

Aí a coisa foi melhorando, começaram a se desenvolver e perderam aquele aspecto gelatinoso.

Foram se firmando, a gente via que eles tinham mais vitalidade.

Brincavam entre si, e quando um começava a chiar, os outros respondiam num chiado diferente. Numa hora parecia que aquele chiado era uma risada, noutra, um grito ou uma conversinha entre eles. Agarrando a beira do balaio, saíam, espalhando-se pela casa. Batizei-os como Meninos Verdes.

Muito ocupada com meus doces, um dia, mexendo com os tachos, um dos meninos começou a subir pela minha perna, pela minha roupa e, quando vi, estava no meu pescoço, olhando para dentro do tacho. Passei uma dedada de açúcar pela boquinha dele. Gostou.

“Oi, que danado!”

Não podia mantê-los em minha casa, sempre com a porta da rua e a porta do meio abertas. Passei a manter fechada a porta do meio.

O tempo passando, o problema se agravando, os meninos cada vez mais vitalizados. Seu Vicente cansado, sentindo-se importunado.

— Dona Cora, olhe o que os danados estão fazendo comigo, minhas mãos arranhadas, eu sem tempo até para fazer um cigarro de palha. A senhora vai fazer criação desses salta-caminhos?

— Paciência, isso veio para mim, mas não tenho como resolver.

— Deixe, Dona Cora, num dia de chuva, coloco todos numa caixa de papelão e solto rio abaixo.

— Velho, não fale isso outra vez. É um crime. Os Meninos Verdes vieram para mim. Tenho de resolver o problema.

Pedi socorro para minha boa vizinha:

— Converse com a mulher do Presidente da República. É criatura muito humana, já esteve aqui na cidade, conhece a senhora.

Carteei com a Primeira-Dama. Em resposta dizia-se muito admirada e pedia fotos. O filho de minha vizinha tirou fotos muito nítidas. Eu as enviei.

A resposta chegou antes do que eu esperava: ia mandar buscar os Meninos Verdes.

Eu disse a ela que o carro deveria parar longe de casa para não despertar suspeitas.

Os portadores — um médico, uma enfermeira e uma assistente social — chegaram como se fossem comprar doces. Ficaram pasmos, absurdos com o que viam!

Meus Meninos Verdes foram acomodados pela enfermeira em uma caixa acolchoada e rumaram para o Planalto.

Assim, me achei aliviada, mas não liberta. Espiritualmente estava ligada a eles e já sentindo sua falta. Acompanhava à distância a nova vida dos Meninos Verdes.

Quando chegaram ao Palácio, foi um espanto geral. O Presidente mandara construir, na parte do palácio reservada à família, uma casa especial com auditores e visores. Quando não estava ocupado, gostava de sentar-se na frente da casa dos Meninos Verdes.

Uma enfermeira os acompanhava permanentemente. A alimentação estava a cargo da nutricionista. Pedagogos, psicólogos e antropólogos faziam parte da equipe de estudos. Os serezinhos cresciam devagar.

O Presidente da época foi substituído, e todos os presidentes depois dele continuaram a cuidar dos meninos.

Foi quando resolveram criar a Cidade dos Meninos Verdes, um polo de turismo que seria mais interessante que a Disneylândia, na América do Norte. Chamaram um grande arquiteto para projetar a cidade.

Quando estava para iniciar-se a construção da cidade, cientistas brasileiros convidaram cientistas estrangeiros para conhecerem aqueles seres que surpreendiam a todos pelo seu desenvolvimento.

Vieram cientistas de muitos países, e ficaram assombrados, sem saber o que eram e de onde tinham vindo aqueles serezinhos. Examinaram, fotografaram, radiografaram, observaram, indagaram.

Mas a ideia de criar uma Cidade dos Meninos Verdes como atração turística não foi aprovada. Os serezinhos eram um fenômeno científico obscuro, de imprevisível futuro, assim, decidiram continuar observando suas vidas, o que poderia significar grandes avanços na Ciência.

Países estrangeiros ofereceram tecnologia científica para acompanhar o caso e queriam levar os Meninos Verdes para a Europa, Ásia, Estados Unidos.

Ofereceram até indenização!

O Brasil rejeitou a proposta.

O governo aceitou apenas a colaboração científica, técnica, cultural de todos os países do mundo, declarando-os Meninos Verdes patrimônio universal da Ciência.

Acompanho à distância meus Meninos Verdes. Estão crescendo devagarinho, dão sinais de inteligência e vivacidade, já estão com 12 centímetros!

sexta-feira, 31 de julho de 2020

3/8 - TERTÚLIA DIALÓGICA LITERÁRIA - CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

O Velho 

                   Carlos Drummond de Andrade

Vocês não acreditam, mas também este cronista costuma ir ao Banco, e não só para pagar contas de luz, gás, telefone. Vai conversar com o Gerente - um gerente simpático, desses que não coçam a orelha quando a gente propõe uma reforma de título. Mas quem sou eu para pleitear tamanha mercê? Procuro o Gerente para conversar sobre amenidades, e ele me ouve com paciência e atenção. Até me conta coisas de seu filho, o Escritor. O Escritor tem três anos e escreve literalmente em todas as paredes da casa. Fareja livros com gravuras e sem gravuras e aprende coisas que eu, possivelmente, ignoro. A curiosidade intelectual do Escritor é insaciável. Assim fazemos do Banco, sem prejuízo dos interesses bancários (pois o Gerente é uma fera para trabalhar no meio das maiores apoquentações), um lugar de grato repouso.

Ontem o gerente estava tão assoberbado de clientes, papéis, telefonemas, recados, que não tive coragem de me aproximar. Fiquei à espera na poltrona, ao lado de dois rapazes que também esperavam. Esperavam e conversavam sobre política, inflação, Copa do Mundo.

– E como vai teu velho?
– Meu velho? Respondeu o outro. – Aquele vai sempre bem. Melhor do que eu, você e todo mundo.
– Qual a última dele?
– Não tem última. Todas são novas e contínuas. Aos sessent’anos – sessenta e lá vai fumaça – nada, corre, entra em pelada, monta, joga vôlei e só não rema porque não encontra companheiros com a mesma fibra, para disputar regata. Enquanto isso, fuma e bebe.
– E... no resto?
– No resto ele é ainda de goleada. Parece mentira, mas as mulheres adoram o Velho, e ele capricha para dar conta do serviço.
– Quantas vezes ele já casou?
– Perdi a conta. Quatro ou cinco, se não me engano. Ou seis. O extraordinário é que nenhuma das ex se queixa dele, todas que conheço continuaram suas amigas e, de um modo ou outro, dão a entender que o desempenho dele é cem por cento. Sabe de uma coisa?
– Sei. Você tem inveja dele.
– Tenho. Pra que mentir? Meu primeiro casamento não deu certo, o segundo menos ainda. Então desisti, agora sou free-lancer. Mas com o Velho é diferente. Todos os casamentos funcionaram.
– Então, por que acabaram?
– O Velho tem uma teoria que casamento não pode esfriar, vira rotina. Antes que isto aconteça, ele passa uma conversa manhosa na gatona – é especialista em gatonas – e o último episódio da novelinha é vivido sem choro nem briga. Um sábio.
– Um mestre.
– É como eu costumo chamá-lo. Ele responde que não tirou diploma e que todo mundo se for habilidoso, tira de letra. Tem dia que chego a me preocupar: “Mestre, olha essas coronárias!” Ele ri, não dá confiança em responder. “Mestre, não tem medo de negar fogo?” Aí então nem se dá ao trabalho de me olhar; faz que não ouviu. O Nuno, meu irmão mais velho – irmão de pai e mãe, do primeiro casamento -, fica besta de ver tanta resistência, e diz que o Velho não existe, que nosso pai é Energia Cósmica em pessoa.
– E teus outros irmãos?
– Os outros? Deixe ver... Somos quatorze irmãos, espalhados no mundo. Todos adoram o Velho, aliás o Nuno também. Falei quatorze, mas só Deus sabe quantos haverá por aí, desconhecidos da gente. Nem o Velho sabe.
– Algum de vocês puxou a ele na vitalidade?
– Uns fazem força, não creio que consigam. Esse negócio não comporta imitação. Ou bem que o cara nasceu com alegria de viver e gozar a vida, ou nasceu sem isso, e não tem vitamina que ajude. Claro que sempre há margem para performances individuais brilhantes, e o normal é a gente ser bem-sucedida – até certo ponto, o ponto X. Mas o Velho excede a marcação. Nunca vi ninguém tão identificado com o mundo, a mulher, as coisas agradáveis da vida. Sem contar vantagem – isso é importante. Não se vangloria de nada. Vive plenamente.
– Quer dizer que ele dá nó até em pingo d’água?
– Não faz outra coisa. Bem, vou indo. Nosso amigo Gerente ainda não se desvencilhou daquele cara, e eu prefiro voltar depois.
– Espera mais um pouco.
– Não posso. Tenho de ir a um batizado.
– Essa não!
– O Velho está me esperando. Me escolheu para padrinho do seu rebento mais novo. Tenho um irmãozinho de dois meses, não te contei? Ciao.

quarta-feira, 29 de julho de 2020

3/8 - TEXTOS PARA ATIVIDADE EM AULA

TEXTO I

Furto de flor
Furtei uma flor daquele jardim. O porteiro do edifício cochilava, e eu furtei a flor.
Trouxe-a para casa e coloquei-a no copo com água. Logo senti que ela não estava feliz. O copo destina-se a beber, e flor não é para ser bebida
Passei-a para o vaso, e notei que ela me agradecia, revelando melhor sua delicada composição. Quantas novidades há numa flor, se a contemplarmos bem.
Sendo autor do furto, eu assumira a obrigação de conservá-la. Renovei a água do vaso, mas a flor empalidecia. Temi por sua vida. Não adiantava restituí-la no jardim. Nem apelar para o médico de flores. Eu a furtara, eu a via morrer.
Já murcha, e com a cor particular da morte, peguei-a docemente e fui depositá-la no jardim onde desabrochara. O porteiro estava atento e repreendeu-me.
– Que ideia a sua, vir jogar lixo de sua casa neste jardim!
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Rio de Janeiro, José 
Olympio, 1985. p. 80.


TEXTO II

“O machismo na área da saúde”, Inês de Castro:


https://bandnewsfm.band.uol.com.br/colunista/dentro-do-espelho-com-ines-de-castro/




quinta-feira, 25 de junho de 2020

TAREFA PARA 10/8


 Leia o texto a seguir e responda às questões.

Os anos correm entre um século e outro, mas os problemas permanecem os mesmos para os kalungas*. Quilombolas** que há mais de 200 anos encontraram lar entre os muros de pedra da Chapada dos Veadeiros, na região norte do Estado de Goiás, os kalungas ainda vivem com pouca ou quase nenhuma infraestrutura. De todos os abusos sofridos até hoje, um em particular deixa essa comunidade em carne viva: os silenciosos casos de violência sexual contra meninas. Entretanto, passado o afã das denúncias de abuso sexual que figuraram em grandes reportagens da imprensa nacional em abril do ano passado, a comunidade retornou ao seu curso natural. E assim os kalungas continuam a viver no esquecimento, no abandono e, principalmente, no medo. As vítimas não viram seus algozes punidos. O silêncio prevalece e grita alto naquelas que se arriscaram a mostrar suas feridas. O sentimento é o de ter se exposto em vão. 

(Adaptado de Jéssica Raphaela e Camila Silva, O silêncio atrás da serra. Revista Azmina. Disponível em http://azmina.com.br/secao/o-silencio-atras-da-serra/. Acessado em 03/10/2016.) 


* Kalungas: habitantes da comunidade do quilombo Kalunga, maior território quilombola do país.

 ** Quilombolas: termo atribuído aos “remanescentes de quilombos”. Atualmente, há no Brasil cerca de 2.600 comunidades quilombolas certificadas pela Fundação Cultural dos Palmares.

QUESTÕES:

a) Identifique no texto dois motivos para o sofrimento histórico vivido pela comunidade quilombola Kalunga. 

b) No final do texto há uma figura de linguagem. Identifique qual é a figura de linguagem.  Quais termos são utilizados para se obter esse efeito de sentido?

25/6 - METÁFORA - GILBERTO GIL

Uma lata existe para conter algo
Mas quando o poeta diz "lata"
Pode estar querendo dizer o incontível
Uma meta existe para ser um alvo
Mas quando o poeta diz "meta"
Pode estar querendo dizer o inatingível
Por isso, não se meta a exigir do poeta
Que determine o conteúdo em sua lata
Na lata do poeta tudonada cabe
Pois ao poeta cabe fazer
Com que na lata venha caber
O incabível
Deixe a meta do poeta, não discuta
Deixe a sua meta fora da disputa
Meta dentro e fora, lata absoluta
Deixe-a simplesmente metáfora
Uma lata existe para conter algo
Mas quando o poeta diz "lata"
Pode estar querendo dizer o incontível
Uma meta existe para ser um alvo
Mas quando o poeta diz "meta"
Pode estar querendo dizer o
Fonte: LyricFind

segunda-feira, 22 de junho de 2020

22/6 - TERTÚLIA DIALÓGICA LITERÁRIA - HELENA SUT


O GRANDE CIRCO MÍSTICO por Helena Sut
O Teatro Guaíra está lotado. Sento ao lado de minhas companheiras, ambas de sete anos, que aguardam ansiosas o início do espetáculo. Tudo é novidade, o palco, as cortinas com desenhos de remendos...
“Acho que todos os dias do ano não cabem nos quadradinhos...”
“Todas as cortinas são assim?”
O primeiro personagem surge em gestos largos. Presenciamos o nascimento da história, as músicas ganham força nos corpos perfeitos que desenham os movimentos. Olhos brilhantes refletem a pluralidade de cores no palco. O silêncio é reflexo da força das músicas compostas por Chico Buarque e Edu Lobo.
“Olha
Será que ela é moça
Será que ela é triste
Será que é o contrário
Será que é pintura
O rosto da atriz...”
Beatriz surge com movimentos que flutuam no céu das fantasias. A equilibrista desenha as estrelas que acendem nossos brilhos infantis. Somos embalados na suavidade da bailarina. O desejo cria novas perspectivas e rabisca algumas inquietações. O amor é encenado no encontro ideal sob um céu prateado na tênue linha de nossas trajetórias.
“Sim, me leve para sempre, Beatriz
Me ensine a não andar com os pés no chão
Para sempre é sempre por um triz
Ai, diz quantos desastres tem na minha mão
Diz que é perigoso a gente ser feliz...”
Cada geração representa a possibilidade do encontro com a alegria, da imortalidade do circo. Os palhaços, domadores, bailarinas... Todos são personagens dos sonhos nos carrosséis e nos trapézios de nossas construções individuais.
Minha filha e sua amiguinha não piscam. Estão enfeitiçadas pela emoção encenada na “ponta” de cada bailarina, nos corpos perfeitos que deslizam no palco como realidades, nos sorrisos coloridos dos personagens, nas lágrimas do grupo de pierrôs, nos intensos brilhos das purpurinas e dos grandes balões transparentes... Todos somos reféns das fantasias circenses.
Intervalo. Cerram as cortinas e as luzes são acesas. Na fila dos doces, presencio o diálogo das pequenas. Falam sem parar, concretizam na estrutura dos primeiros aprendizados a poesia que aprendem com a emoção. Começam os questionamentos:
“Como nascem os filhos no palco?”
“O que aconteceu com a Beatriz?”
“O que significa gerações?”
Tento responder que são representações, mas crio uma nova e misteriosa palavra.
“O que são representações?’
“O que representavam os cavalinhos com luzes do carrossel?”
“E os sapatos deixados pela bailarina no palco, o que representam?”
Silenciam as indagações com o início do segundo ato. Somos novamente hipnotizados pela beleza dos encontros e desencontros. Reconstruímos as tendas de nossas infâncias e conseguimos perceber como são coloridas as realizações e como precisamos lutar pelo que acreditamos.
 “Não sei se é um truque banal
Se um invisível cordão
Sustenta a vida real...”
Quando a cortina com remendos encerra o espetáculo, compreendo que ela significa a possibilidade de costurar nossas vivências com as fantasias infantis tão presentes no circo do mundo. Minhas pequenas companheiras saltam das cadeiras e aplaudem de pé. Aos poucos, todos se levantam e passamos algum tempo saudando os sorridentes bailarinos, intérpretes de nossos “eus” desejados.
“Bravo!” Gritavam as meninas, repetindo a palavra que ecoava por todo o teatro.
A alegria do público eleva-se aos mundos místicos. Entrega-se à sustentação dos circos possíveis.
“Chove tanta flor
Que, sem refletir
Um ardoroso espectador
Vira colibri...”
Barbarella e Marina correm em direção ao palco e somem nas laterais. Sigo-as com a responsabilidade dos adultos, mas no íntimo sinto-me realizada com a ousadia das pequenas. Quando consegui encontrá-las, estavam nos camarins junto com os bailarinos e muitos convidados. O palhaço, as dançarinas, Beatriz... Todos eram pessoas reais, rodeadas por amigos... Novas exclamações:
“Como estão suados!”
“Quero ver a Beatriz!”
Depois de alguns comentários inocentes e muitos cumprimentos, saímos. No palco, as duas começam a cantar e rodopiar pelo tablado. Bailam as representações com a sombreada iluminação das lembranças.
Perdi a realidade na imensidão do teatro visto do palco e pude ver, sentadinha no primeiro balcão, uma menina de quase sete anos deslumbrada com o primeiro balé. Cachos dourados, vestidinho xadrez e sapatos de verniz... Consegui me reconhecer assistindo ao bolero de Ravel, da Companhia de Maurice Bejárt no Teatro Municipal do Rio de Janeiro.
Um bailarino loiro, vestindo uma malha vermelha, dançando numa superfície negra... Tudo presente. A música, os movimentos, a emoção, a menina deslumbrada... Nunca esqueci a beleza daquele momento, a intensidade dos movimentos, a força da música que desvirginou as representações com a realidade possível na coreografia dinâmica do intérprete.
Cerram as cortinas remendadas de anos...
As duas cansam de suas piruetas e recomeçam a conversa, sempre intercalando a palavra representação. Sinto vontade de rir, mas compreendo a intensidade daquele instante e respondo com seriedade aos questionamentos... A emoção sempre será o grande alicerce para as verdadeiras representações.
“Manhê, sabe o que vou ser quando crescer?”
Alguns instantes de silêncio. Pensei que todos os personagens encenados eram futuros desejados pela criança. Ainda assim, arrisquei:
“Bailarina?”
“Não, mãe! Quero ser Beatriz!”
O significado do nome brilhou em minha memória - “a que faz os outros felizes”. Fui dominada pela forte emoção de ser a mãe de um ideal, de uma realização. Ela desconhecia a importância do nome e ainda sim desejava ser a maturidade da lona que abrigava nossa relação. Com a voz embargada, murmurei enquanto a abraçava:
“Já é Barbarella. Você sempre será minha Beatriz...”

O Balé do Teatro Guaíra é o criador do “O grande circo místico”, com a trilha sonora de Chico Buarque e Edu Lobo. Apresentado pela primeira vez em 1983, o balé é baseado no poema de Jorge de Lima - “O grande circo místico” (1938), inspirado na história da família Knieps e do circo conhecido mundialmente.


sábado, 13 de junho de 2020

15/6 - TERTÚLIA DIALÓGICA LITERÁRIA - JORGE DE LIMA

O Grande Circo Místico

O médico de câmara da imperatriz Teresa - Frederico Knieps - 
resolveu que seu filho também fosse médico,
mas o rapaz fazendo relações com a equilibrista Agnes,
com ela se casou, fundando a dinastia de circo Knieps
de que tanto se tem ocupado a imprensa.
Charlote, filha de Frederico, se casou com o clown,
de que nasceram Marie e Oto.
E Oto se casou com Lily Braun a grande deslocadora
que tinha no ventre um santo tatuado.
A filha de Lily Braun - a tatuada no ventre
quis entrar para um convento,
mas Oto Frederico Knieps não atendeu,
e Margarete continuou a dinastia do circo
de que tanto se tem ocupado a imprensa.
Então, Margarete tatuou o corpo
sofrendo muito por amor de Deus,
pois gravou em sua pele rósea
a Via-Sacra do Senhor dos Passos.
E nenhum tigre a ofendeu jamais;
e o leão Nero que já havia comido dois ventríloquos,
quando ela entrava nua pela jaula adentro,
chorava como um recém-nascido.
Seu esposo - o trapezista Ludwig - nunca mais a pôde amar,
pois as gravuras sagradas afastavam
a pele dela o desejo dele.
Então, o boxeur Rudolf que era ateu
e era homem fera derrubou Margarete e a violou.
Quando acabou, o ateu se converteu, morreu.
Margarete pariu duas meninas que são o prodígio do Grande Circo Knieps.
Mas o maior milagre são as suas virgindades
em que os banqueiros e os homens de monóculo têm esbarrado;
são as suas levitações que a platéia pensa ser truque;
é a sua pureza em que ninguém acredita;
são as suas mágicas que os simples dizem que há o diabo;
mas as crianças crêem nelas, são seus fiéis, seus amigos, seus devotos.
Marie e Helene se apresentam nuas,
dançam no arame e deslocam de tal forma os membros
que parece que os membros não são delas.
A platéia bisa coxas, bisa seios, bisa sovacos.
Marie e Helene se repartem todas,
se distribuem pelos homens cínicos,
mas ninguém vê as almas que elas conservam puras.
E quando atiram os membros para a visão dos homens,
atiram a alma para a visão de Deus.
Com a verdadeira história do grande circo Knieps
muito pouco se tem ocupado a imprensa.

                                                    [A Túnica Inconsútil]

terça-feira, 9 de junho de 2020

10/6 - RELATO PESSOAL


O dia em que desisti de ser professora

              Sou professora de informática educativa da Escola Municipal Professora Olga Teixeira de Oliveira, em Duque de Caxias/RJ. Leciono há 15 anos. Fico pensado se algum de nós já pensou em desistir. Hoje acordei pensando em desistir de ser professora. Sei lá, fazer outra coisa. Chega, disse para mim mesma quando o relógio despertou. Pronto, decidi, vou ser secretária, atendente, camelô. Qualquer coisa menos ser professora. Isso mesmo.
              Analisando as minhas opções, a ideia de fazer outra coisa me agrada. Talvez, secretária e falar vários idiomas. Mas, arranho no inglês. Não, não dá para mim. Camelô: essa ideia me anima. Caminhar. Pegar sol, “Esta blusa está linda na senhora, combina com seu perfil (atriz também, pois preciso dissimular bem as gordurinhas da 'freguesa').”. Acho que também não, mas ainda tenho várias opções. Às vezes na vida da gente temos que mudar, fazer outras coisas. “Professor de sala de informática não faz nada. Quero ver encarar uma turma como nós”, disse um professor em tom de ironia na hora do recreio, olhando-me de soslaio. Fito-o furiosa. Agora mais decidida ainda. Vou largar o magistério. Quanta falta de companheirismo. Lembro do meu juramento há ... alguns anos. Jurei honrar minha profissão e zelar pelo bem-estar dos meus alunos. Nada tinha sobre querer desistir, se cansar, horas extras, indignação, choro, carregar livros, ouvir injúrias. Não, não tinha. Nosso diploma deveria ter prazo de validade.
              A turma chega. Cada um corre para um computador. Interrompem meus pensamentos. Uns gritam eufóricos. Eu, com olhar cansado, peço para abrir um site de pesquisa sobre a Baixada Fluminense, sem me mover. Luiz Felipe, olhos vivos e muita, mas muita energia, grita lá da máquina dez. “Ô dona Rose, não vai conversar com a gente antes, não? A senhora sempre diz que temos que bater um papo antes de começar as pesquisas”. Pergunto molemente sobre o que ele deseja conversar. E ele responde: “Ahhhh, sobre o que nós vamos pesquisar, né?”. Silêncio. Olha para mim, cala-se. Percebe que hoje não estou professora. Compreende. Eles sempre nos compreendem.
              A aula acaba. Todos correm para a saída. Eu também. Saio à rua feliz da vida. Olho o céu. A escola fica para trás. Que alegria! Atravesso a rua alguém grita: “Rosemary! Sou eu, Dona Lourdes.”. Minha professora do 1º ano. Nossa, faz tanto tempo. Aceno com um sorriso de alegria. Nunca me esqueci de seus olhinhos verdes. De como fazia-me sentir importante em suas aulas. Fico olhando-a tentando lembrar algum traço daquele tempo. Ela continuava a mesma. Irradiava alegria e confiança. Existe algo melhor do que ser reconhecida na rua por sua professora do primário? Ela sempre sabia o nome de todo mundo. Fazia a chamada e dizia nome e sobrenome de todos. Eu a olhava com admiração e respeito. Tratava a todos com carinho. Abraça-me. Retribuo. Pergunta-me sobre a vida. Respondo sorrindo: “Professora, sabia que a senhora foi responsável por torna-me professora? A senhora demonstrava tanto carinho com a gente. Falava de poesia como se bebesse as palavras. Somos colegas de profissão com muito orgulho. Lembra quando a senhora nos ‘forçava’ toda aula a trazer um autor para a sala?  ‘Quem você trouxe hoje?’. E um dia eu disse: ‘Cecília Meireles.’. A senhora deu um grito de admiração pela minha escolha. Neste dia resolvi ser professora.” Ela sorriu meio sem jeito. Olhos embaçados. Diz que sente falta dos alunos, eles traziam-lhe vida. Abraça-me novamente e convida-me para ir um dia a sua casa. Está aposentada. Despede-se.
              Paro numa lanchonete peço um pastel e um caldo de cana. Começo a pensar em suas palavras. Bebesse poesia. Dona Maria de Lourdes. Escola Municipal Coronel Eliseu. Resolvi ser professora. Entre uma mordida e outra sinto meu humor melhorar. Decido que preciso pensar em algo diferente para a próxima aula. Nasci para ser professora. Como fui importante, quanto carinho. Nada é mais importante do que isso. Lembro do Luiz Felipe. Sorrio novamente. Vocação será um bom assunto para os oitavos anos pesquisarem na internet na próxima aula. Preciso contar a uma amiga da USP sobre o Projeto dos idosos: Alfabetização de adultos com o uso da tecnologia: uma proposta possível. Sinto-me viva novamente. Acho que o dia de hoje daria uma boa história.

Disponível em: < http://www.museudapessoa.net/pt/conteudo/historia/o-dia-em-que-desisti-de-ser-professora-40841/colecao/101964>. Acesso em: 10 mar. 2017.

segunda-feira, 8 de junho de 2020

8/6 - EXERCÍCIO DE PRODUÇÃO


RELATO PESSOAL
O milagre do saco plástico
Lembro até de seu nome: Nadir. Foi minha professora de geografia. Já me esqueci de todas as capitais, mares e rios que ela possa ter tentado me ensinar, mas foi apenas uma de suas aulas que fez com que ela nunca mais me saísse da cabeça.
Entrou na sala nervosa, colocou suas coisas em cima da mesa, ameaçou começar o de sempre, mas resolveu sentar. Não sentou na cadeira da escrivaninha, hábito de muitos de meus velhos professores que, com o avançar da idade, já davam suas aulas sentados. Ao contrário, dona Nadir até rejuvenesceu, pois sentou sobre o tampo da mesa. Ficou em silêncio, encarando a turma. "Hoje a minha aula vai ser diferente." Não precisava nem dizer, já estava irreconhecível.
A senhora carrancuda era agora uma mulher jovem e franca, sentada sobre a escrivaninha. O que a transformou foi um acontecimento banal. Teve que frear bruscamente seu carro quando um saco plástico grudou no seu para-brisa. Por incrível que pareça, naquela época, jogar um saco pela janela não era algo tão absurdo e a aula diferente não foi um sermão politicamente correto sobre o assunto.
O fato é que dona Nadir tinha levado um susto e entrara em contato com o cristal, com a vida na corda bamba e o mero saco plástico ao vento fez com que ganhássemos de nossa professora de geografia uma incrível aula sobre a importância da vida. Dona Nadir refletiu sobre o instante, sobre o quanto tudo pode se transformar muito rapidamente. Falou do quanto podemos promover revoluções quando agimos em horas fundamentais.
Suas palavras iam nos recrutando como poderosos agentes sobre essa matéria etérea que é a vida. Nunca mais esqueci. Na verdade, me lembro de duas de suas aulas: a do milagre do saco plástico e da sua aula seguinte, quando ela voltou ao seu estado normal, com aulas normais.
Seus mares e rios voltaram a fluir em branco, enquanto eu esperava ansiosa por aquela outra Nadir. Aquela que, sentada sobre a mesa, sabia muito mais do que acidentes geográficos.
Adaptado de Folha de S. Paulo, 12 de janeiro de 2014

domingo, 7 de junho de 2020

8/6 - TERTÚLIA DIALÓGICA LITERÁRIA - ADÉLIA PRADO


Sem enfeite nenhum  

Adélia Prado 

A mãe era desse jeito: só ia em missa das cinco, por causa de os gatos no escuro serem pardos. Cinema, só uma vez, quando passou os Milagres do padre Antônio em Urucânia. Desde aí, falava sempre, excitada nos olhos, apressada no cacoete dela de enrolar um cacho de cabelo: se eu fosse lá, quem sabe?


Sofria palpitação e tonteira, lembro dela caindo na beira do tanque, o vulto dobrado em arco, gente afobada em volta, cheiro de alcanfor.



Quando comecei a empinar as blusas com o estufadinho dos peitos, o pai  chegou pra almoçar, estudando terreno, e anunciou com a voz que fazia nessas ocasiões, meio saliente: companheiro meu tá vendendo um relogim que é uma gracinha, pulseirinha de crom', danado de bom pra do Carmo. Ela foi logo emendando: tristeza, relógio de pulso e vestido de bolér. Nem bolero ela falou direito de tanta antipatia. Foi água na fervura minha e do pai.

Vivia repetindo que era graça de Deus se a gente fosse tudo pra um convento e várias vezes por dia era isto: meu Jesus, misericórdia... A senhora tá triste, mãe? eu falava. Não, tou só pedindo a Deus pra ter dó de nós.

Tinha muito medo da morte repentina e pra se livrar dela, fazia as nove primeiras sextas-feiras, emendadas. De defunto não tinha medo, só de gente viva, conforme dizia. Agora, da perdição eterna, tinha horror, pra ela e pros outros.

Quando a Ricardina começou a morrer, no Beco atrás da nossa casa,   ela me chamou com a voz alterada: vai lá, a Ricardina tá morrendo, coitada,  que Deus perdoe ela, corre lá, quem sabe ainda dá tempo de chamar o padre, falava de arranco, querendo chorar, apavorada: que Deus perdoe ela, ficou falando sem coragem de aluir do lugar.

Mas a Ricardina era de impressionar mesmo, imagina que falou pra mãe, uma vez, que não podia ver nem cueca de homem que ela ficava doida.  Foi mais por isso que ela ficou daquele jeito, rezando pra salvação da alma da Ricardina.

Era a mulher mais difícil a mãe. Difícil, assim, de ser agradada. Gostava que eu tirasse só dez e primeiro lugar. Pra essas coisas não poupava, era pasta de primeira, caixa com doze lápis e uniforme mandado plissar. Acho mesmo que meia razão ela teve no caso do relógio, luxo bobo, pra quem só tinha um vestido de sair.

Rodeava a gente estudar e um dia falou abrupto, por causa do esforço de vencer a vergonha: me dá seus lápis de cor. Foi falando e colorindo laranjado, uma rosa geométrica: cê põe muita força no lápis, se eu tivesse seu tempo, ninguém na escola me passava, inteligência não é estudar, por exemplo falar você em vez de cê, é   tão mais bonito, é só  acostumar. Quando o coração da gente dispara e a gente fala cortado, era desse jeito que tava a voz da mãe.

Achava estudo a coisa mais fina e inteligente era mesmo, demais até, pensava com a maior rapidez. Gostava de ler de noite, em voz alta, com tia Santa, os livros da Pia Biblioteca, e de um não esqueci, pois ela insistia com gosto no titulo dele, em latim: Máguina pecatrís. Falava era antusiasmo e nunca tive coragem de corrigir, porque toda vez que tava muito alegre, feito naquela hora, desenhando, feito no dia de noite, o pai fazendo serão, ela falou: coitado, até essa hora no serviço pesado.

Não estava gostando nem um pouquinho do desenho, mas nem que eu falava. Com tanta satisfação ela passava o lápis, que eu fiquei foi aflita, como sempre que uma coisa boa acontecia.

Bom também era ver ela passando creme Marsílea no rosto e Antissardina n° 3, se sacudindo de rir depois, com a cara toda empolada. Sua mãe é bonita, me falaram na escola. E era mesmo, o olho meio verde.

Tinha um vestido de seda branco e preto e um mantô cinzentado que ela gostava demais.

Dia ruim foi quando o pai entestou de dar um par de sapato pra ela. Foi três vezes na loja e ela botando defeito, achando o modelo jeca, a cor regalada, achando aquilo uma desgraça e que o pai tinha era umas bobagens. Foi até ele enfezar e arrebentar com o trem, de tanta raiva e mágoa.

Mas sapato é sapato, pior foi com o crucifixo. O pai, voltando de cumprir promessa em Congonhas do Campo, trouxe de presente pra ela um crucifixo torneadinho, o cordão de pendurar, com bambolim nas pontas, a maior gracinha. Ela desembrulhou e falou assim: bonito, mas eu preferia mais se fosse uma cruz simples, sem enfeite nenhum.

Morreu sem fazer trinta e cinco anos, da morte mais agoniada, encomendando com a maior coragem: a oração dos agonizantes, reza aí pra mim, gente.
Fiquei hipnotizada, olhando a mãe. Já no caixão, tinha a cara severa de quem sente dor forte, igualzinho no dia que o João Antônio nasceu. Entrei no quarto querendo festejar e falei sem graça: a cara da senhora, parece que tá com raiva, mãe.

O Senhor te abençoe e te guarde,


Volva a ti o Seu Rosto e se compadeça de ti,

O Senhor te dê a Paz.


Esta é a bênção de São Francisco, que foi abrandando o rosto dela, descansando, descansando, até como ficou, quase entusiasmado.




Era raiva não. Era marca de dor.




Texto publicado em "Prosa Reunida", Editora Siciliano - São Paulo, 1999, foi incluído por Ítalo Moriconi no livro "Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século", Editora Objetiva - Rio de Janeiro, 2000, pág. 349.