quinta-feira, 25 de junho de 2020

TAREFA PARA 10/8


 Leia o texto a seguir e responda às questões.

Os anos correm entre um século e outro, mas os problemas permanecem os mesmos para os kalungas*. Quilombolas** que há mais de 200 anos encontraram lar entre os muros de pedra da Chapada dos Veadeiros, na região norte do Estado de Goiás, os kalungas ainda vivem com pouca ou quase nenhuma infraestrutura. De todos os abusos sofridos até hoje, um em particular deixa essa comunidade em carne viva: os silenciosos casos de violência sexual contra meninas. Entretanto, passado o afã das denúncias de abuso sexual que figuraram em grandes reportagens da imprensa nacional em abril do ano passado, a comunidade retornou ao seu curso natural. E assim os kalungas continuam a viver no esquecimento, no abandono e, principalmente, no medo. As vítimas não viram seus algozes punidos. O silêncio prevalece e grita alto naquelas que se arriscaram a mostrar suas feridas. O sentimento é o de ter se exposto em vão. 

(Adaptado de Jéssica Raphaela e Camila Silva, O silêncio atrás da serra. Revista Azmina. Disponível em http://azmina.com.br/secao/o-silencio-atras-da-serra/. Acessado em 03/10/2016.) 


* Kalungas: habitantes da comunidade do quilombo Kalunga, maior território quilombola do país.

 ** Quilombolas: termo atribuído aos “remanescentes de quilombos”. Atualmente, há no Brasil cerca de 2.600 comunidades quilombolas certificadas pela Fundação Cultural dos Palmares.

QUESTÕES:

a) Identifique no texto dois motivos para o sofrimento histórico vivido pela comunidade quilombola Kalunga. 

b) No final do texto há uma figura de linguagem. Identifique qual é a figura de linguagem.  Quais termos são utilizados para se obter esse efeito de sentido?

25/6 - METÁFORA - GILBERTO GIL

Uma lata existe para conter algo
Mas quando o poeta diz "lata"
Pode estar querendo dizer o incontível
Uma meta existe para ser um alvo
Mas quando o poeta diz "meta"
Pode estar querendo dizer o inatingível
Por isso, não se meta a exigir do poeta
Que determine o conteúdo em sua lata
Na lata do poeta tudonada cabe
Pois ao poeta cabe fazer
Com que na lata venha caber
O incabível
Deixe a meta do poeta, não discuta
Deixe a sua meta fora da disputa
Meta dentro e fora, lata absoluta
Deixe-a simplesmente metáfora
Uma lata existe para conter algo
Mas quando o poeta diz "lata"
Pode estar querendo dizer o incontível
Uma meta existe para ser um alvo
Mas quando o poeta diz "meta"
Pode estar querendo dizer o
Fonte: LyricFind

segunda-feira, 22 de junho de 2020

22/6 - TERTÚLIA DIALÓGICA LITERÁRIA - HELENA SUT


O GRANDE CIRCO MÍSTICO por Helena Sut
O Teatro Guaíra está lotado. Sento ao lado de minhas companheiras, ambas de sete anos, que aguardam ansiosas o início do espetáculo. Tudo é novidade, o palco, as cortinas com desenhos de remendos...
“Acho que todos os dias do ano não cabem nos quadradinhos...”
“Todas as cortinas são assim?”
O primeiro personagem surge em gestos largos. Presenciamos o nascimento da história, as músicas ganham força nos corpos perfeitos que desenham os movimentos. Olhos brilhantes refletem a pluralidade de cores no palco. O silêncio é reflexo da força das músicas compostas por Chico Buarque e Edu Lobo.
“Olha
Será que ela é moça
Será que ela é triste
Será que é o contrário
Será que é pintura
O rosto da atriz...”
Beatriz surge com movimentos que flutuam no céu das fantasias. A equilibrista desenha as estrelas que acendem nossos brilhos infantis. Somos embalados na suavidade da bailarina. O desejo cria novas perspectivas e rabisca algumas inquietações. O amor é encenado no encontro ideal sob um céu prateado na tênue linha de nossas trajetórias.
“Sim, me leve para sempre, Beatriz
Me ensine a não andar com os pés no chão
Para sempre é sempre por um triz
Ai, diz quantos desastres tem na minha mão
Diz que é perigoso a gente ser feliz...”
Cada geração representa a possibilidade do encontro com a alegria, da imortalidade do circo. Os palhaços, domadores, bailarinas... Todos são personagens dos sonhos nos carrosséis e nos trapézios de nossas construções individuais.
Minha filha e sua amiguinha não piscam. Estão enfeitiçadas pela emoção encenada na “ponta” de cada bailarina, nos corpos perfeitos que deslizam no palco como realidades, nos sorrisos coloridos dos personagens, nas lágrimas do grupo de pierrôs, nos intensos brilhos das purpurinas e dos grandes balões transparentes... Todos somos reféns das fantasias circenses.
Intervalo. Cerram as cortinas e as luzes são acesas. Na fila dos doces, presencio o diálogo das pequenas. Falam sem parar, concretizam na estrutura dos primeiros aprendizados a poesia que aprendem com a emoção. Começam os questionamentos:
“Como nascem os filhos no palco?”
“O que aconteceu com a Beatriz?”
“O que significa gerações?”
Tento responder que são representações, mas crio uma nova e misteriosa palavra.
“O que são representações?’
“O que representavam os cavalinhos com luzes do carrossel?”
“E os sapatos deixados pela bailarina no palco, o que representam?”
Silenciam as indagações com o início do segundo ato. Somos novamente hipnotizados pela beleza dos encontros e desencontros. Reconstruímos as tendas de nossas infâncias e conseguimos perceber como são coloridas as realizações e como precisamos lutar pelo que acreditamos.
 “Não sei se é um truque banal
Se um invisível cordão
Sustenta a vida real...”
Quando a cortina com remendos encerra o espetáculo, compreendo que ela significa a possibilidade de costurar nossas vivências com as fantasias infantis tão presentes no circo do mundo. Minhas pequenas companheiras saltam das cadeiras e aplaudem de pé. Aos poucos, todos se levantam e passamos algum tempo saudando os sorridentes bailarinos, intérpretes de nossos “eus” desejados.
“Bravo!” Gritavam as meninas, repetindo a palavra que ecoava por todo o teatro.
A alegria do público eleva-se aos mundos místicos. Entrega-se à sustentação dos circos possíveis.
“Chove tanta flor
Que, sem refletir
Um ardoroso espectador
Vira colibri...”
Barbarella e Marina correm em direção ao palco e somem nas laterais. Sigo-as com a responsabilidade dos adultos, mas no íntimo sinto-me realizada com a ousadia das pequenas. Quando consegui encontrá-las, estavam nos camarins junto com os bailarinos e muitos convidados. O palhaço, as dançarinas, Beatriz... Todos eram pessoas reais, rodeadas por amigos... Novas exclamações:
“Como estão suados!”
“Quero ver a Beatriz!”
Depois de alguns comentários inocentes e muitos cumprimentos, saímos. No palco, as duas começam a cantar e rodopiar pelo tablado. Bailam as representações com a sombreada iluminação das lembranças.
Perdi a realidade na imensidão do teatro visto do palco e pude ver, sentadinha no primeiro balcão, uma menina de quase sete anos deslumbrada com o primeiro balé. Cachos dourados, vestidinho xadrez e sapatos de verniz... Consegui me reconhecer assistindo ao bolero de Ravel, da Companhia de Maurice Bejárt no Teatro Municipal do Rio de Janeiro.
Um bailarino loiro, vestindo uma malha vermelha, dançando numa superfície negra... Tudo presente. A música, os movimentos, a emoção, a menina deslumbrada... Nunca esqueci a beleza daquele momento, a intensidade dos movimentos, a força da música que desvirginou as representações com a realidade possível na coreografia dinâmica do intérprete.
Cerram as cortinas remendadas de anos...
As duas cansam de suas piruetas e recomeçam a conversa, sempre intercalando a palavra representação. Sinto vontade de rir, mas compreendo a intensidade daquele instante e respondo com seriedade aos questionamentos... A emoção sempre será o grande alicerce para as verdadeiras representações.
“Manhê, sabe o que vou ser quando crescer?”
Alguns instantes de silêncio. Pensei que todos os personagens encenados eram futuros desejados pela criança. Ainda assim, arrisquei:
“Bailarina?”
“Não, mãe! Quero ser Beatriz!”
O significado do nome brilhou em minha memória - “a que faz os outros felizes”. Fui dominada pela forte emoção de ser a mãe de um ideal, de uma realização. Ela desconhecia a importância do nome e ainda sim desejava ser a maturidade da lona que abrigava nossa relação. Com a voz embargada, murmurei enquanto a abraçava:
“Já é Barbarella. Você sempre será minha Beatriz...”

O Balé do Teatro Guaíra é o criador do “O grande circo místico”, com a trilha sonora de Chico Buarque e Edu Lobo. Apresentado pela primeira vez em 1983, o balé é baseado no poema de Jorge de Lima - “O grande circo místico” (1938), inspirado na história da família Knieps e do circo conhecido mundialmente.


sábado, 13 de junho de 2020

15/6 - TERTÚLIA DIALÓGICA LITERÁRIA - JORGE DE LIMA

O Grande Circo Místico

O médico de câmara da imperatriz Teresa - Frederico Knieps - 
resolveu que seu filho também fosse médico,
mas o rapaz fazendo relações com a equilibrista Agnes,
com ela se casou, fundando a dinastia de circo Knieps
de que tanto se tem ocupado a imprensa.
Charlote, filha de Frederico, se casou com o clown,
de que nasceram Marie e Oto.
E Oto se casou com Lily Braun a grande deslocadora
que tinha no ventre um santo tatuado.
A filha de Lily Braun - a tatuada no ventre
quis entrar para um convento,
mas Oto Frederico Knieps não atendeu,
e Margarete continuou a dinastia do circo
de que tanto se tem ocupado a imprensa.
Então, Margarete tatuou o corpo
sofrendo muito por amor de Deus,
pois gravou em sua pele rósea
a Via-Sacra do Senhor dos Passos.
E nenhum tigre a ofendeu jamais;
e o leão Nero que já havia comido dois ventríloquos,
quando ela entrava nua pela jaula adentro,
chorava como um recém-nascido.
Seu esposo - o trapezista Ludwig - nunca mais a pôde amar,
pois as gravuras sagradas afastavam
a pele dela o desejo dele.
Então, o boxeur Rudolf que era ateu
e era homem fera derrubou Margarete e a violou.
Quando acabou, o ateu se converteu, morreu.
Margarete pariu duas meninas que são o prodígio do Grande Circo Knieps.
Mas o maior milagre são as suas virgindades
em que os banqueiros e os homens de monóculo têm esbarrado;
são as suas levitações que a platéia pensa ser truque;
é a sua pureza em que ninguém acredita;
são as suas mágicas que os simples dizem que há o diabo;
mas as crianças crêem nelas, são seus fiéis, seus amigos, seus devotos.
Marie e Helene se apresentam nuas,
dançam no arame e deslocam de tal forma os membros
que parece que os membros não são delas.
A platéia bisa coxas, bisa seios, bisa sovacos.
Marie e Helene se repartem todas,
se distribuem pelos homens cínicos,
mas ninguém vê as almas que elas conservam puras.
E quando atiram os membros para a visão dos homens,
atiram a alma para a visão de Deus.
Com a verdadeira história do grande circo Knieps
muito pouco se tem ocupado a imprensa.

                                                    [A Túnica Inconsútil]

terça-feira, 9 de junho de 2020

10/6 - RELATO PESSOAL


O dia em que desisti de ser professora

              Sou professora de informática educativa da Escola Municipal Professora Olga Teixeira de Oliveira, em Duque de Caxias/RJ. Leciono há 15 anos. Fico pensado se algum de nós já pensou em desistir. Hoje acordei pensando em desistir de ser professora. Sei lá, fazer outra coisa. Chega, disse para mim mesma quando o relógio despertou. Pronto, decidi, vou ser secretária, atendente, camelô. Qualquer coisa menos ser professora. Isso mesmo.
              Analisando as minhas opções, a ideia de fazer outra coisa me agrada. Talvez, secretária e falar vários idiomas. Mas, arranho no inglês. Não, não dá para mim. Camelô: essa ideia me anima. Caminhar. Pegar sol, “Esta blusa está linda na senhora, combina com seu perfil (atriz também, pois preciso dissimular bem as gordurinhas da 'freguesa').”. Acho que também não, mas ainda tenho várias opções. Às vezes na vida da gente temos que mudar, fazer outras coisas. “Professor de sala de informática não faz nada. Quero ver encarar uma turma como nós”, disse um professor em tom de ironia na hora do recreio, olhando-me de soslaio. Fito-o furiosa. Agora mais decidida ainda. Vou largar o magistério. Quanta falta de companheirismo. Lembro do meu juramento há ... alguns anos. Jurei honrar minha profissão e zelar pelo bem-estar dos meus alunos. Nada tinha sobre querer desistir, se cansar, horas extras, indignação, choro, carregar livros, ouvir injúrias. Não, não tinha. Nosso diploma deveria ter prazo de validade.
              A turma chega. Cada um corre para um computador. Interrompem meus pensamentos. Uns gritam eufóricos. Eu, com olhar cansado, peço para abrir um site de pesquisa sobre a Baixada Fluminense, sem me mover. Luiz Felipe, olhos vivos e muita, mas muita energia, grita lá da máquina dez. “Ô dona Rose, não vai conversar com a gente antes, não? A senhora sempre diz que temos que bater um papo antes de começar as pesquisas”. Pergunto molemente sobre o que ele deseja conversar. E ele responde: “Ahhhh, sobre o que nós vamos pesquisar, né?”. Silêncio. Olha para mim, cala-se. Percebe que hoje não estou professora. Compreende. Eles sempre nos compreendem.
              A aula acaba. Todos correm para a saída. Eu também. Saio à rua feliz da vida. Olho o céu. A escola fica para trás. Que alegria! Atravesso a rua alguém grita: “Rosemary! Sou eu, Dona Lourdes.”. Minha professora do 1º ano. Nossa, faz tanto tempo. Aceno com um sorriso de alegria. Nunca me esqueci de seus olhinhos verdes. De como fazia-me sentir importante em suas aulas. Fico olhando-a tentando lembrar algum traço daquele tempo. Ela continuava a mesma. Irradiava alegria e confiança. Existe algo melhor do que ser reconhecida na rua por sua professora do primário? Ela sempre sabia o nome de todo mundo. Fazia a chamada e dizia nome e sobrenome de todos. Eu a olhava com admiração e respeito. Tratava a todos com carinho. Abraça-me. Retribuo. Pergunta-me sobre a vida. Respondo sorrindo: “Professora, sabia que a senhora foi responsável por torna-me professora? A senhora demonstrava tanto carinho com a gente. Falava de poesia como se bebesse as palavras. Somos colegas de profissão com muito orgulho. Lembra quando a senhora nos ‘forçava’ toda aula a trazer um autor para a sala?  ‘Quem você trouxe hoje?’. E um dia eu disse: ‘Cecília Meireles.’. A senhora deu um grito de admiração pela minha escolha. Neste dia resolvi ser professora.” Ela sorriu meio sem jeito. Olhos embaçados. Diz que sente falta dos alunos, eles traziam-lhe vida. Abraça-me novamente e convida-me para ir um dia a sua casa. Está aposentada. Despede-se.
              Paro numa lanchonete peço um pastel e um caldo de cana. Começo a pensar em suas palavras. Bebesse poesia. Dona Maria de Lourdes. Escola Municipal Coronel Eliseu. Resolvi ser professora. Entre uma mordida e outra sinto meu humor melhorar. Decido que preciso pensar em algo diferente para a próxima aula. Nasci para ser professora. Como fui importante, quanto carinho. Nada é mais importante do que isso. Lembro do Luiz Felipe. Sorrio novamente. Vocação será um bom assunto para os oitavos anos pesquisarem na internet na próxima aula. Preciso contar a uma amiga da USP sobre o Projeto dos idosos: Alfabetização de adultos com o uso da tecnologia: uma proposta possível. Sinto-me viva novamente. Acho que o dia de hoje daria uma boa história.

Disponível em: < http://www.museudapessoa.net/pt/conteudo/historia/o-dia-em-que-desisti-de-ser-professora-40841/colecao/101964>. Acesso em: 10 mar. 2017.

segunda-feira, 8 de junho de 2020

8/6 - EXERCÍCIO DE PRODUÇÃO


RELATO PESSOAL
O milagre do saco plástico
Lembro até de seu nome: Nadir. Foi minha professora de geografia. Já me esqueci de todas as capitais, mares e rios que ela possa ter tentado me ensinar, mas foi apenas uma de suas aulas que fez com que ela nunca mais me saísse da cabeça.
Entrou na sala nervosa, colocou suas coisas em cima da mesa, ameaçou começar o de sempre, mas resolveu sentar. Não sentou na cadeira da escrivaninha, hábito de muitos de meus velhos professores que, com o avançar da idade, já davam suas aulas sentados. Ao contrário, dona Nadir até rejuvenesceu, pois sentou sobre o tampo da mesa. Ficou em silêncio, encarando a turma. "Hoje a minha aula vai ser diferente." Não precisava nem dizer, já estava irreconhecível.
A senhora carrancuda era agora uma mulher jovem e franca, sentada sobre a escrivaninha. O que a transformou foi um acontecimento banal. Teve que frear bruscamente seu carro quando um saco plástico grudou no seu para-brisa. Por incrível que pareça, naquela época, jogar um saco pela janela não era algo tão absurdo e a aula diferente não foi um sermão politicamente correto sobre o assunto.
O fato é que dona Nadir tinha levado um susto e entrara em contato com o cristal, com a vida na corda bamba e o mero saco plástico ao vento fez com que ganhássemos de nossa professora de geografia uma incrível aula sobre a importância da vida. Dona Nadir refletiu sobre o instante, sobre o quanto tudo pode se transformar muito rapidamente. Falou do quanto podemos promover revoluções quando agimos em horas fundamentais.
Suas palavras iam nos recrutando como poderosos agentes sobre essa matéria etérea que é a vida. Nunca mais esqueci. Na verdade, me lembro de duas de suas aulas: a do milagre do saco plástico e da sua aula seguinte, quando ela voltou ao seu estado normal, com aulas normais.
Seus mares e rios voltaram a fluir em branco, enquanto eu esperava ansiosa por aquela outra Nadir. Aquela que, sentada sobre a mesa, sabia muito mais do que acidentes geográficos.
Adaptado de Folha de S. Paulo, 12 de janeiro de 2014

domingo, 7 de junho de 2020

8/6 - TERTÚLIA DIALÓGICA LITERÁRIA - ADÉLIA PRADO


Sem enfeite nenhum  

Adélia Prado 

A mãe era desse jeito: só ia em missa das cinco, por causa de os gatos no escuro serem pardos. Cinema, só uma vez, quando passou os Milagres do padre Antônio em Urucânia. Desde aí, falava sempre, excitada nos olhos, apressada no cacoete dela de enrolar um cacho de cabelo: se eu fosse lá, quem sabe?


Sofria palpitação e tonteira, lembro dela caindo na beira do tanque, o vulto dobrado em arco, gente afobada em volta, cheiro de alcanfor.



Quando comecei a empinar as blusas com o estufadinho dos peitos, o pai  chegou pra almoçar, estudando terreno, e anunciou com a voz que fazia nessas ocasiões, meio saliente: companheiro meu tá vendendo um relogim que é uma gracinha, pulseirinha de crom', danado de bom pra do Carmo. Ela foi logo emendando: tristeza, relógio de pulso e vestido de bolér. Nem bolero ela falou direito de tanta antipatia. Foi água na fervura minha e do pai.

Vivia repetindo que era graça de Deus se a gente fosse tudo pra um convento e várias vezes por dia era isto: meu Jesus, misericórdia... A senhora tá triste, mãe? eu falava. Não, tou só pedindo a Deus pra ter dó de nós.

Tinha muito medo da morte repentina e pra se livrar dela, fazia as nove primeiras sextas-feiras, emendadas. De defunto não tinha medo, só de gente viva, conforme dizia. Agora, da perdição eterna, tinha horror, pra ela e pros outros.

Quando a Ricardina começou a morrer, no Beco atrás da nossa casa,   ela me chamou com a voz alterada: vai lá, a Ricardina tá morrendo, coitada,  que Deus perdoe ela, corre lá, quem sabe ainda dá tempo de chamar o padre, falava de arranco, querendo chorar, apavorada: que Deus perdoe ela, ficou falando sem coragem de aluir do lugar.

Mas a Ricardina era de impressionar mesmo, imagina que falou pra mãe, uma vez, que não podia ver nem cueca de homem que ela ficava doida.  Foi mais por isso que ela ficou daquele jeito, rezando pra salvação da alma da Ricardina.

Era a mulher mais difícil a mãe. Difícil, assim, de ser agradada. Gostava que eu tirasse só dez e primeiro lugar. Pra essas coisas não poupava, era pasta de primeira, caixa com doze lápis e uniforme mandado plissar. Acho mesmo que meia razão ela teve no caso do relógio, luxo bobo, pra quem só tinha um vestido de sair.

Rodeava a gente estudar e um dia falou abrupto, por causa do esforço de vencer a vergonha: me dá seus lápis de cor. Foi falando e colorindo laranjado, uma rosa geométrica: cê põe muita força no lápis, se eu tivesse seu tempo, ninguém na escola me passava, inteligência não é estudar, por exemplo falar você em vez de cê, é   tão mais bonito, é só  acostumar. Quando o coração da gente dispara e a gente fala cortado, era desse jeito que tava a voz da mãe.

Achava estudo a coisa mais fina e inteligente era mesmo, demais até, pensava com a maior rapidez. Gostava de ler de noite, em voz alta, com tia Santa, os livros da Pia Biblioteca, e de um não esqueci, pois ela insistia com gosto no titulo dele, em latim: Máguina pecatrís. Falava era antusiasmo e nunca tive coragem de corrigir, porque toda vez que tava muito alegre, feito naquela hora, desenhando, feito no dia de noite, o pai fazendo serão, ela falou: coitado, até essa hora no serviço pesado.

Não estava gostando nem um pouquinho do desenho, mas nem que eu falava. Com tanta satisfação ela passava o lápis, que eu fiquei foi aflita, como sempre que uma coisa boa acontecia.

Bom também era ver ela passando creme Marsílea no rosto e Antissardina n° 3, se sacudindo de rir depois, com a cara toda empolada. Sua mãe é bonita, me falaram na escola. E era mesmo, o olho meio verde.

Tinha um vestido de seda branco e preto e um mantô cinzentado que ela gostava demais.

Dia ruim foi quando o pai entestou de dar um par de sapato pra ela. Foi três vezes na loja e ela botando defeito, achando o modelo jeca, a cor regalada, achando aquilo uma desgraça e que o pai tinha era umas bobagens. Foi até ele enfezar e arrebentar com o trem, de tanta raiva e mágoa.

Mas sapato é sapato, pior foi com o crucifixo. O pai, voltando de cumprir promessa em Congonhas do Campo, trouxe de presente pra ela um crucifixo torneadinho, o cordão de pendurar, com bambolim nas pontas, a maior gracinha. Ela desembrulhou e falou assim: bonito, mas eu preferia mais se fosse uma cruz simples, sem enfeite nenhum.

Morreu sem fazer trinta e cinco anos, da morte mais agoniada, encomendando com a maior coragem: a oração dos agonizantes, reza aí pra mim, gente.
Fiquei hipnotizada, olhando a mãe. Já no caixão, tinha a cara severa de quem sente dor forte, igualzinho no dia que o João Antônio nasceu. Entrei no quarto querendo festejar e falei sem graça: a cara da senhora, parece que tá com raiva, mãe.

O Senhor te abençoe e te guarde,


Volva a ti o Seu Rosto e se compadeça de ti,

O Senhor te dê a Paz.


Esta é a bênção de São Francisco, que foi abrandando o rosto dela, descansando, descansando, até como ficou, quase entusiasmado.




Era raiva não. Era marca de dor.




Texto publicado em "Prosa Reunida", Editora Siciliano - São Paulo, 1999, foi incluído por Ítalo Moriconi no livro "Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século", Editora Objetiva - Rio de Janeiro, 2000, pág. 349.



quarta-feira, 3 de junho de 2020

ATIVIDADE AVALIATIVA - CRITÉRIOS DE CORREÇÃO

1. Domínio do gênero (máx: 2,5 e mín: 0,0)

- Seguiu a estrutura da paráfrase-esquema?
- O esquema apresenta as ideias principais do texto?
- As palavras-chave são coerentes com o tema do texto?
- Usaram setas e cores diferentes para apresentarem as informações?


2. Cumprimento da proposta  (máx: 2,5 e mín: 0,0)

- A dupla apresentou, no mínimo, quatro palavras-chave para cada parágrafo?
- A dupla usou o aplicativo Jamboard?
- Utilizou o maior número de recursos do aplicativo?
- Explicou quem é o autor?
- Explicou as citações/referências do texto?
- A dupla enviou a atividade no horário combinado?


3. Coerência  (máx: 2,5 e mín: 0,0)

- O trabalho apresentado é coerente ao que foi pedido?
- As palavras são coerentes com o texto?


4. Domínio da norma - padrão  (máx: 2,5 e mín: 0,0)

- A dupla seguiu a norma - padrão?
Uso de linguagem formal;
Ortografia;
Acentuação.

terça-feira, 2 de junho de 2020

RELATO PESSOAL

FUTEBOL

      Em 1950, ninguém tinha TV em casa na rua Henrique Dias. Os primeiros aparelhos de televisão estavam chegando ao Brasil e custavam muito caro. Eu escutava no rádio todos os jogos do São Paulo e até os do Corinthians, por causa do tio Constante. 
    Uma vez, meu tio Odílio, irmão mais velho do meu pai, prometeu me levar ao estádio do Pacaembu para ver o São Paulo se eu me portasse bem. Virei santo naquela semana de espera interminável. No sábado depois do almoço ele veio me buscar; eu já estava pronto desde as onze da manhã. A rua inteira sabia que eu ia assistir a São Paulo versus Nacional, um time fraco escolhido a dedo pelo tio Odílio para não desiludir meu coração são-paulino. 
       Gostei do amendoim embrulhado em canudo de papel, achei lindo o verde gramado, as cores dos uniformes e o estrondo dos foguetes, mas os jogadores me decepcionaram um pouco, apesar de ganharem por dois a zero. Pelo rádio o jogo era mais emocionante: “Teixeirinha mata no peito, baixa na terra passa por um, por dois, invade a área, fulmina e é gol!”
      Na minha imaginação infantil, aquele homem que matava no peito, invadia e fulminava tinha superpoderes. O gol do locutor reverberava em meus ouvidos, longo, interminável: gol do São Paulo! Quanta alegria! No campo era menos emocionante, os jogadores de carne e osso erravam passes, chutavam para fora e perdiam gol cara a cara, exatamente como nós na porta da fábrica. 
        Então veio a Copa do Mundo de 1950 e o Brasil foi para a final com o Uruguai, no Maracanã. O país parou naquele Domingo de sol e, com ele, o Brás. Almocei e fui encontrar meu primo Flávio, para ouvirmos a transmissão da partida no Armazém Simões, que os irmãos Lauro, Laurindo e Laurentino tinham herdado do pai e que ficava na esquina, embaixo do sobrado dos Bemposta. 
       A tia Leonor, mãe do Flávio, sempre brincalhona, me deu um pedaço de goiabada cascão e nós fomos para lá. Escutei a irradiação sentado numa pilha de sacos de arroz, todo importante, ao lado dos moços do balcão. Estavam lá o Honório e a Honorina, irmãos de Lauro, Laurindo e Laurentino; o Caçapa, funcionário do Gasômetro que jogava bola na rua com um gorro de rendinha para prender o cabelo; o Isidoro, que uma vez me defendeu de um engraxate valentão; os irmãos Zeca e Fernando Braulio; o negro Gradim e outros que disputavam partidas sensacionais na frente da fábrica, nas tardes de sábado e nas manhãs de domingo, dias de folga para eles. 
      O Brasil marcou primeiro: gol de Friaça, ponta-direita do São Paulo. No segundo tempo o Uruguai empatou, mas não abalou os que estavam ali: todos tinham certeza de que seríamos campeões mundiais pela primeira vez. Os fogos para a comemoração já aguardavam no canto, ao lado de um balão-estrela verde e amarelo decorado com o nome dos jogadores. 
        O desastre veio pelos pés do uruguaio Gighia, autor do segundo gol. O armazém ficou mudo, apenas o cheiro de saco de mantimentos no ar. A voz do locutor perdeu o brilho, melancólica: Está encerrada a peleja no Maracanã. Uruguai, campeão do mundo! Ficaram todos de cabeça baixa por tanto tempo, que parecia brincadeira de como-está-fica. Em silêncio, depois, saíram desolados, alguns com lágrimas nos olhos. O Caçapa deu um murro estrondoso na porta do armazém e foi confortado pelo seu Albino das Neves. 
       Esse seu Albino era um português com barriga d’água que meu tio médico periodicamente esvaziava com uma seringa enorme: o líquido amarelo que saía ele jogava no penico, embaixo da cama. Encostado na carroceria de um caminhão, a cabeça apoiada no braço direito, o Isidoro soluçava feito criança. Era a primeira vez que eu via homem chorar sem ninguém ter morrido.

 Dráuzio Varella. Nas ruas do Brás. Coleção Memória e História. São Paulo, Companhia das letrinhas, 2000.